segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Um texto interessante

Obs: Achei esse texto na internet e gostei muito.



Descartável longa vida

Quando tudo começa, nos planejam muitas coisas e muito tempo para que tudo aconteça. Nós nem temos consciência ainda e as estatísticas já sabem mais da nossa expectativa de vida do que nós mesmos. Enquanto as nossas expectativas de vida giram em torno de um colo e um berço, a oficial gira em torno dos setenta anos. Idade, poucos meses. Expectativa de vida, setenta anos. Assim começo a justificativa da minha existência. E seu fim.
Logo alguns poucos anos de sinceridade passam e passamos a fingir não mais querer as coisas a que recorremos nos momentos difíceis. Naqueles primeiros anos, quando somos honestos e diretos, choramos por aquilo que mais precisamos no momento. Seja leite, colo, sono ou uma bunda limpa. Mas logo depois dos tais primeiros anos, somos ensinados a não reclamar por tudo o que queremos. Nem sequer pedir. E finalmente aprendemos a renegar algumas coisas até que seja insuportável a sua falta. E foi por isso que você fez o que fez.
Desde o primeiro dia te amei. Amiga de amigos, sempre a conheci de vista, e nessa vista te amei à primeira. Naturalmente um dia você virou minha amiga de primeiro grau e passamos tempos e momentos juntos até você me amar. E a partir desse dia, me renegou. Por motivos que não importam aqui como não importavam na época, você não me queria como seu amor.
Dias sem me ver, sem pensar em mim, vivia sua vida tranqüila com a segurança inconsciente de ter um refúgio no coração que sofria para te acolher. Teve amigos, parceiros, paixões e um amor. Namorados, amantes e um amor. A todos você deu mais tempo e menos confiança do que a mim. Mais dedicação e menos carinho. Você nunca se preocupou em cultivar as relações, por isso apenas a minha sobreviveu. Ficou em mim um carinho petrificado, um fóssil de amor eterno. Mas que sempre correspondia quando você pedia refúgio.
Das vezes em que renegou o meu querer, a que mais doeu foi quando amou outro homem. Ele era ingênuo e se permitiu também lhe amar. Com ele você foi natural e honesta em seu amor como era em nossa amizade. Penso agora se teria bastado se seu amor viesse antes de nossa amizade, se assim estaríamos juntos. Caso tivesse lhe oferecido a sedução e não a cumplicidade, teríamos um futuro nesse presente? Caso tivesse despertado seu amor antes do seu carinho, teria nosso amor durado em chama e não em carvão? Caso eu quisesse seu corpo antes da sua alma, estaríamos presos hoje pela mão e não pela intenção?
Mas como de costume, você não se preocupou em cultivar o seu amor por aquele homem. Julgou ser fato o que era opinião. Julgou ser instituição o que era circunstância. Julgou ser luz do sol o que era luz da fogueira. E deixou o amor morrer. E o homem que você amou, tinha a sorte e a coragem de deixar de te amar. Talvez por isso você o tenha amado, talvez por isso você tenha sofrido. Por isso que doeu tanto, ele foi o único homem por quem você sofreu. Em sua vida você beijou tantos, abraçou tantos, com tantos teve paixão, com dois teve amor e com um apenas teve sofrimento. Percebi então que preferia seu sofrimento ao seu carinho.
Seu sofrimento diz que você havia perdido algo importante. Seu sofrimento elevava o seu amor por ele acima do meu. A coragem desse homem de dispensar o seu amor, tornou seu amor por ele maior. Eu, em minha covardia, nunca vou poder igualar essa importância inatingível por outros meios que não o da falta. Nunca conseguiria dispensar sua companhia, nem mesmo que assim superasse esse rancor corrosivo de ser seu segundo amor em importância. Nessa oposição terrível e inevitável da vida, o que mais me suporta é o que mais me machuca. Por isso dói tanto o sofrimento que vejo em você por outro homem. Outro amor eu poderia suportar. Mas que outro homem seja motivo de sua desgraça, me mostra, com a nitidez que o lamento nos traz, que eu giro em torno de uma estrela presa na órbita de outro astro, maior em sua dignidade e gravidade.
Mas mesmo nesse momento de inveja e rancor, pude reconhecer meu lugar e minha função e te acolher em seu desassossego. Cuidei de você, enxuguei suas lágrimas, te abracei com tanto amor, que achei que ele era suficiente para nós dois. Mas como das outras vezes, antes e depois, seu amor relapso prevaleceu. Você se curou e eu voltei a sentir sua falta. Você se foi e eu voltei a ficar em modo de espera. De esperar as dificuldades da sua vida lhe trazerem até o meu conforto. Passei a vida assim, orando para que tudo estivesse bem com você, mas vivendo pelos momentos em que sua única saída era recorrer ao meu amor. Torcendo para que você caminhasse sempre para frente, mas vivendo pelos momentos que eu tinha que lhe levantar.
Assim se passaram os anos de minha vida, um sub-produto da sua. Eras de espera para minutos de amor altruísta. Mil auroras para uma alvorada. Mil paixões dispensadas para um amor cultivado.
Vivi assim, nesse amor do sacrifício e da certeza. Aceitei as suas ausências por entender as razões que regem o amor sublime. Como o bebê que renega o colo, até que o chão esteja quente demais para andar. Como o adolescente que renega o abraço da mãe, até que a catapora o impeça de abraçar qualquer outro. Como o irmão que renega o amor fraterno, até a morte dos pais. Como tudo o que é ingênuo, o amor sublime é inconsciente. Assim você me usou, como esse alimento que não estraga e por isso pode ser esquecido até o momento em que a fome voltar.
Agora tenho já setenta anos e você acaba de morrer. Não morreu em meus braços, mas também essa é a única queda que eu não poderia lhe levantar. Como eu não seria útil como de todas as outra vez, você não me procurou. E por isso te entendo, te perdôo, como sempre fiz. Mas agora já não tenho a quem cuidar, meu amor antes tão generoso, agora vai se tornar egoísta, pois não tem mais os momentos de socorro pelo qual vivia. Nunca vivi à sua memória, mas sempre à espera da próxima necessidade. Vivi para te ajudar, com esse amor que não estraga, sempre te esperando. Agora esse amor acabou e o que sobrou não tem mais utilidade. Tudo o que restou, tudo o que sou, é um recipiente vazio e seco. Sem dono, nem uso. Por isso tenho esse revólver em minha mão, pronto a disparar uma bala em minha cabeça. Faço jus à minha vida, acabando com ela. Minha morte, pelas minhas próprias mãos, nada mais é do que coerência à tudo o que sempre acreditei. Existi para o amor e atendi aos seus chamados. Sempre. Certo. Agora tudo o que restou já serviu ao seu propósito. E assim, chego ao dia de conciliar as minhas expectativas com as das estatísticas oficiais. Expectativa de vida, setenta anos. Sem mais utilidade, meu destino é o lixo. Adeus.

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